Crazy Horse - Loucura não passa do palco
"Em palco são iguais, não se distinguem, parecem clones. A mesma altura, o mesmo corpo, o mesmo rosto, o mesmo rigor, o mesmo profissionalismo. Têm o controlo absoluto sobre cada ponto de si, o que lhes permite executar todo o tipo de movimento – exótico ou erótico, sedutor ou provocador – com a leveza de uma pena ou a magia de sopro.
Fora de cena, tapadas com roupas de marca, cabelos soltos e maquilhagem q.b., apenas um ponto comum: os olhos, o olhar Crazy Horse. É um dos requisitos de selecção. Ao contrário do nariz, obrigatoriamente pequeno, exige-se um olhar que rasgue as pálpebras, independentemente da cor. Um olhar penetrante, arrasador, mas ao mesmo tempo distante, ausente, preso no vazio. Um olhar que se vê, que se sente à distância, que esmaga.
“Olá, muito obrigado”, dispara, com sotaque francês, uma das rainhas da Arte do Nu, quando alguém, cavalheiro, abre a porta de serviço do Casino Lisboa.
Chegam por volta das oito da noite. Umas em grupo, outras sozinhas. Dirigem-se ao elevador e sobem ao segundo andar, em direcção aos camarins, próximos da entrada do Auditório dos Oceanos, deixando no ar o aroma típico do perfume francês.
Vêm de calça de ganga bem justa e t-shirt colada ao corpo, aconchegada por um blusão. Calçam sapato de salto alto, nuns casos abertos, noutros fechados. Impressionam pela beleza e pelo corpo. Exibem um sorriso mais branco que a neve e um espírito de enorme tranquilidade.
“Boa noite”. O sotaque agora é diferente, não deu para perceber a origem, mas a simpatia é a mesma.
Duas semanas em Portugal já deram para aprender algumas palavras, ainda que a intimidade com desconhecidos seja muito limitada, muito restrita. Mais um requisito de selecção. Nada de conversas, nada de blá-blá com estranhos. A própria identidade é totalmente preservada. Não há nomes, não há pontos de referência. Nem sequer se consegue associar a imagem de bastidores à da figura em palco. A transformação é tal que não se reconhecem.
Hoje, contudo, abriram uma excepção e deixaram espreitar o camarim. Espreitar, apenas, porque, como fez questão de deixar claro um elemento da organização, “aqui não entra ninguém e muito menos entraria um homem”.
Espelhos ladeados por lâmpadas iluminam rostos de luz, num cenário polvilhado de objectos e produtos cosméticos em doses industriais.
Não têm cabeleireiras nem esteticistas. Todo o trabalho de produção é feito por elas.
O ambiente, aqui sim, é de grande intimidade, traduzido não apenas no à-vontade e descontracção, mas em pequenos gestos, como o deslizar dos dedos por cabelos alheios, na mão que percorre outro rosto, num toque mais sensual. Falam da vida, falam do dia-a-dia. Ouve-se em fundo o continuar de uma conversa iniciada no elevador, acerca do preço de uma peça de roupa que uma delas viu à tarde numa montra.
A porta fecha-se quando o olhar tenta penetrar mais fundo, mas fica claro que o grupo funciona como uma família muito unida e que o sucesso de uma actuação depende desta harmonia, desta consciência única e não tanto do trabalho individual.
Numa outra sala, a meia dúzia de metros, Cristina descansa. É a guardiã do guarda-roupa do Crazy Horse. Sentada, com o braço apoiado numa mesa de tampo branco, estranha a presença do repórter e não consegue evitar a gargalhada quando lhe perguntamos pela... roupa. “Qual roupa? Não sei se sabe, mas elas não usam muita roupa”, satiriza, enquanto estende a mão para algo parecido a umas cuequinhas fio dental. “Tirando isto e este adereço de cabedal, não há muito mais. Espere... também há este cordão aqui.” Para tapar alguma coisa? Cristina troca a gargalhada inicial pelo riso intimista: “Claro que não. É para usarem de lado, à cintura.”
A ausência de vestes justifica, em parte, a rapidez com que as bailarinas se aprumam para subir ao palco. Meia hora basta para a metamorfose e aí estão elas, prontas para pedir a Deus que salve a sua pele (tema de abertura do espectáculo ‘God Save our Bareskin’).
O público aplaude. Não se sabe se por Deus ter criado mulheres assim se pela actuação irrepreensível das bailarinas. Aplausos que se multiplicam de número para número, num palco recriado à imagem do cabaré de Paris. Seis metros de largura, três de profundidade. As reduzidas dimensões do palco ‘ampliam’ as bailarinas. Mesmo na última fila da plateia é possível observá-las na perfeição.
Só no final se ouvem algumas manifestações mais sentidas – uma espécie de ‘gritos de descompressão’ – de uma audiência que percorre todas as idades e os dois sexos, em idêntica proporção. Um acolhimento “fantástico”, como classificou uma das beldades, o que leva a organização a admitir prolongar o espectáculo. “É uma possibilidade muito forte que estamos a equacionar. Os espectáculos têm estado esgotados, desde a estreia, a 3 de Abril, e é muito provável que o Crazy Horse continue no Casino por mais tempo que o previsto (29 de Abril)”, disse ao CM uma fonte da UAU, entidade responsável pela vinda do cabaré a Lisboa. Posta de parte está a hipótese de pisar outros palcos portugueses. “Foi um espectáculo pensado apenas para o Casino Lisboa e que obrigou a profundas alterações no Auditório dos Oceanos, nomeadamente à adaptação do palco”, acrescentou.
“Não sei se é o melhor espectáculo do Mundo. Há outros de grande beleza, como o Cirque du Soleil. Mas, dentro do género (cabaré) é seguramente o melhor da Europa e um dos mais prestigiados a nível internacional”, afirma, por seu turno, Rita Casabanca, coordenadora das bailarinas, que actuou durante cinco anos no Crazy Horse. Rita garante que são mulheres normais, com uma vida normal, idêntica a de qualquer artista de teatro ou bailarina. Têm muito cuidado com a alimentação, privilegiando o peixe, as saladas, a fruta e os iogurtes em detrimento da carne e fritos, fazem trabalho de ginásio, passeiam, vão ao cinema, enfim, nada de transcendente, com excepção para a vida social, limitada e controlada.
Nota-se, aliás, uma grande disciplina e rigor – semelhante à do número de arranque do espectáculo, onde são recriados movimentos de ordem unida em parada militar. Ninguém pisa o risco. Há uma cultura Crazy Horse interiorizada para cumprir ao milímetro. Não é por acaso que a motivação é um dos factores de selecção mais importantes. Se fumam ou bebem, por exemplo, fazem-no em privado ou longe dos olhares indiscretos.
Têm consciência que são belas, deslumbrantes, mas sabem que isso por si só não chega para pertencer e permanecer na companhia. “É preciso ter cabeça e uma grande personalidade”, como confidenciou uma delas."
correio da manha 14-04-2007
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